sábado, 31 de dezembro de 2016

Os Dez Melhores Filmes de 2016

Este ano foi tão corrido que, de certa forma, vou utilizar a mesma introdução de 2015 para anunciar o nosso último artigo da temporada:

Sábado, dia 31 de dezembro. É desesperador olhar para o relógio e perceber que 2016 já está quase acabando e que a nossa a prometida lista dos com Os Dez Melhores Filmes do Ano ainda não foi lançada. Mas não precisamos nos preocupar: afinal, ela acaba de sair do forno!

Como a seleção e a análise de cada um dos filmes demorou mais tempo do que o previsto para ser produzida e publicada, não vamos nos alongar nos comentários, deixando que os mesmos se desenvolvam apenas através das análises sobra cada uma dessas incríveis obras. Sempre contando com as “injustiças” cometidas, a relação final tentará não decepcionar ninguém!

E antes que digam que este ou aquele filme foi lançado em um ano anterior ao de 2016, ou que tal produção foi exibida pela primeira vez em determinado Festival, lembramos que o critério que sempre utilizamos para definir os filmes que integrarão essas listas especiais de fim de ano obedecem a seguinte regra: produções que estrearam em 2016 nas salas de cinema do Brasil através do circuito comercial; ou aquelas lançadas diretamente em Home Video ou VOD.

Outra observação importante: “Os Oito Odiados” (2015) sempre foi um dos candidatos mais fortes a fazerem parte desta seleção, mas como o oitavo longa de Quentin Tarantino teve sua pré-estreia marcada para a última semana do ano passado em algumas capitais, resolvi deixa-lo de fora e abrir espaço para outras produções menos lembradas, que me encantaram da mesma forma e que também merecem ser apreciadas por aqueles que ainda não as conferiram.

Vale lembrar que os filmes “Animais Noturnos” (2016) de Tom Ford; e “Eu, Daniel Blake” (2016) de Ken Loach, outros dois prováveis candidtos a figurarem nesta lista, estrearam somente no dia 29 de dezembro nas salas de cinema brasileiras, momento em que a nossa lista já estava definida e fechada para a edição.

Após essa série de esclarecimentos, não custa lembrar que, assim como a seleção dos melhores filmes brasileirosrealizada no meio desta semana, essa listagem também não é longa, mas os comentários a respeito de cada um dos filmes eleitos acabaram se estendendo um pouco mais do que o esperado.

Então, sem mais conversas, vamos aos Os Dez Melhores Filmes de 2016 (em ordem decrescente):

10º. LUGAR: “O ABRAÇO DA SERPENTE”

(El Abrazo de la Serpiente, Colômbia | Venezuela | Argentina, 2015) - de Ciro Guerra

Data da Estreia: 18 de fevereiro de 2016

Inspirado nos diários de viagem registrados pelo etnologista alemão Theodor Koch-Grünberg e pelo botânico estadunidense Richard Evans Schultes, “O Abraço da Serpente” resgata algumas das mais belas memórias que marcaram as primeiras campanhas de exploração da Amazônia Colombiana. Através da jornada de intensa transformação destes dois pesquisadores, o longa acaba propondo uma salutar discussão sobre o grau de importância e sobre os verdadeiros propósitos que vários dos estudos envolvendo os povos indígenas sul-americanos representaram para a comunidade científica mundial, sempre em face da dominação e do extermínio dos mesmos.

Entrecortados e interligados, os fragmentos das missões de Theo (Jan Bijvoet) e Evan (Brionne Davis) estão distados por um período de, aproximadamente, quarenta anos. Entretanto, os desdobramentos das experiências indigenistas de cada um deles se aproximam de uma forma muito peculiar, principalmente por comungarem dos mesmos objetivos e pelo fato de terem sido conduzidas pelo mesmo guia, Karamakate (Nilbio Torres na fase jovem; e Antonio Bolivar na fase experiente), um xamã que encontrou – em seu completo isolamento – um terreno propício para continuar mantendo vivas as suas tradições, sobretudo por ainda resistir como o único sobrevivente de sua tribo.

Repleto de significados, os caminhos traçados e percorridos pelas expedições vão sendo remodelados por conceitos filosóficos. Na prática, a aventura acaba se transformando em uma fabulosa saga de autorreflexão dos personagens, que têm as suas crenças e convicções colocadas à prova a partir do raro contato com uma planta sagrada que possui excelentes propriedades de cura; um bálsamo poderoso plenamente capaz de alterar os níveis de consciência e proteger qualquer indivíduo das situações de total descontrole.

Arrojado e inteligente, o diretor Ciro Guerra abandona algumas das principais convenções cinematográficas e – no melhor sentido da expressão – desrespeita a habitual linearidade empregada na maioria das reconstituições históricas.  A narrativa se desenvolve com suavidade, sem necessitar de um esforço tangencial que venha traduzir qualquer mensagem que possa estar escondida nas suas entrelinhas. Eficiente, o filme alcança o seu propósito ao tratar com simplicidade a descomunal relação homem-selva, remetendo aos primeiros contatos entranhados entre civilizações; à curiosa aproximação de diferentes culturas; e à absoluta relação de desconfiança que vai sendo contornada pelos atípicos laços de amizade construídos entre Karamakate e os estrangeiros.

Sua poesia é reforçada pela belíssima fotografia em preto e branco, ao passo em que o realismo é ditado pela crueldade do homem branco, pela imposição da supremacia étnica e pela desconstrução étnico-cultural promovida através do escambo, da evangelização ou da exploração dos recursos naturais abundantes, por exemplo. Épico contemporâneo do cinema latino, “O Abraço da Serpente” envolve a vida e a morte de maneira extremamente fascinante. Um tour de force eloquente que trabalha, com profunda inventividade e misticismo, as bases mais singulares da antropologia.

"El Abrazo de la Serpiente" (2015) de Ciro Guerra - Ciudad Lunar Producciones [co] | Caracol Televisión [co]

9º. LUGAR: “CREEPY”

(Kurîpî: Itsuwari no Rinjin, Japão, 2016) - de Kiyoshi Kurosawa

Data da Estreia: 17 de novembro de 2016

A trama ardilosa e extremamente envolvente de “Creepy” nos conecta ao que existe de melhor no thriller psicológico japonês. Trazendo o gênero de terror para a atmosfera eletrizante dos filmes policiais, Kiyoshi Kurosawa nos apresenta um projeto convincente, instigante e profundo. A produção vem carregada por um inegável primor técnico – tanto na estética quanto na construção narrativa – características que também acabam nos remetendo a um dos maiores sucessos do diretor, o insano e original “A Cura” (1997).

Após se ver envolvido em um grave incidente que o deixou absolutamente traumatizado, Takakura (Hidetoshi Nishijima) decide se aposentar do ofício de policial investigativo e passa a trabalhar como professor de psicologia criminal em uma conceituada universidade de Tóquio. Esperando que a nova carreira lhe ofereça um pouco mais de tranquilidade, ele resolve se mudar para um afastado bairro do subúrbio junto de sua esposa, Yasuko (Yûko Takeuchi). Não demora muito para que o casal comece a estabelecer protocolares laços de amizade com seus vizinhos imediatos, os Nishino. A reservada família é composta por um senhor estranhamente simpático (Teruyuki Kagawa) que, com o auxílio da filha adolescente, cuida de sua esposa enferma.

A nova rotina de Takakura transcorria com total serenidade no conforto da nova casa, mas o fato dele utilizar parte de sua experiência para ministrar suas aulas não permitia a sua completa desvinculação das atividades da antiga corporação. Embora estivesse plenamente afastado de suas funções como detetive, ele não conseguiu conter a curiosidade quando Nogami (Masahiro Higashide), um ex-colega de serviço, lhe pediu um conselho técnico para tentar concluir as investigações de um misterioso caso ocorrido há quase seis anos, no qual uma família inteira havia desaparecido sem que os corpos nunca tivessem sido encontrados. Aparentemente complexo e sem uma solução lógica, o enigma paira em suspenso até que uma série de esquisitas coincidências e o surgimento de inesperadas testemunhas começam a chamar a atenção de Takakura e Nogami.

Mesmo com um prólogo de tirar o fôlego, “Creepy” pode não conquistar o público instantaneamente. Afinal, grande parte da estrutura do longa é construída através de um estudo minucioso sobre o perfil psicológico de cada um dos personagens, além da proeminente e gradativa ambientação que vai sendo preparada para o seu clímax final. Aqui a psicopatia é concebida, tratada e trabalhada de forma latente, sendo absorvida e interpretada de maneira soberba pelo grande vilão da história que, apesar de ter o perfil e a identidade escancaradamente entregues durante o desdobramento das ações, pretendemos não revelar no corpo deste texto para não estragar a antecipação de alguns twists que são lançados ao longo do lancinante desenvolvimento do enredo. Arrepiante e bizarro, esse “embuste escatológico” se configurou como um dos melhores suspenses do ano.

"Kurîpî: Itsuwari no Rinjin" (2016) de Kiyoshi Kurosawa - Asahi Shimbun [jp] | Asmik Ace Entertainment [jp]
KDDI Corporation [jp] | Kinoshita Group [jp] | Kobunsha [jp] | Shochiku Company [jp]

8º. LUGAR: “JULIETA”

(Julieta, Espanha, 2016) - de Pedro Almodóvar

Data da Estreia: 7 de julho de 2016

Cercado por uma atmosfera enternecida e misteriosamente charmosa, o trabalho mais recente de Pedro Almodóvar explora as relações humanas de maneira singular, permitindo que o cineasta espanhol volte a criar um ambiente propício para se debruçar sobre a esfera emocional dos dilemas femininos. Experiência cinematográfica cativante, “Julieta” se comporta como um melodrama elegante que em nenhum momento oferece pausas para o público respirar. O clima de suspense é ditado pela mistura de sentimentos da personagem-título e embalado por uma trilha sonora tipicamente herrmanniana. Além disso, não podemos deixar de destacar seu esplendoroso visual, reforçado pela vivacidade de sua tradicional paleta de cores – ainda que toda essa a exuberância tenha sido apresentada de modo bem mais sóbrio desta vez.

O tom melancólico que marca o desenrolar dos acontecimentos transparece no semblante sofrido de Julieta (Emma Suárez), uma mulher de meia idade que vive em Madrid com o atual namorado, Lorenzo (Darío Grandinetti); os dois estão tratando de resolver as últimas pendências para se mudarem em definitivo para Portugal. Entretanto, os planos de Julieta mudam drasticamente, e o seu destino toma um rumo completamente inesperado após um encontro casual com Beatriz (Michelle Jenner), melhor amiga de sua filha durante a infância. Antía (Blanca Parés) não entra em contato com a mãe há mais de doze anos, desde quando abandonou o lar sem deixar nenhum contato.

Desestabilizada e com o coração coberto por feridas incicatrizáveis, Julieta decide encarar a realidade de frente, tentando correr atrás de um tempo que provavelmente não irá reconquistar e procurando se livrar das condenações do passado que insistem em lhe enfraquecer. Na esperança de retomar o contato com a filha, ela resolve voltar a morar em seu antigo apartamento e começa a escrever uma carta carregada de dor e de culpa, registrando as lembranças mais marcantes do período em que viveram juntas. Através de flashbacks, vamos conhecendo detalhes da juventude de Julieta (Adriana Ugarte) e do seu relacionamento com Xoan (Daniel Grao), pai da pequena e encantadora Antía (Priscilla Delgado).

Tomando como base uma série de contos da escritora canadense Alice Munro, Almodóvar assume o controle das ações ao construir um roteiro formidável e preciso. Entrelaçando toda a história da protagonista pelas duas fases mais extremadas e decisivas de sua vida, ele percorre caminhos supostamente óbvios para desvendar os segredos e as motivações de sua transformação. A previsibilidade fica apenas nas aparências, pois a trama é conduzida por um fluxo narrativo intenso que mantém contornos angustiantes do início ao fim da projeção. “Julieta” não é uma obra-prima, mas é a prova de que o diretor sempre tem algo a nos dizer e que ainda pode surpreender de maneira extremamente positiva quando se propõe a cumprir seus desafios particulares.

"Julieta" (2016) de Pedro Almodóvar - El Deseo [es]

7º. LUGAR: “TANGERINA”

(Tangerine, Estados Unidos, 2015) - de Sean Baker

Data da Estreia: 21 de janeiro de 2016

A assombrosa e ilimitada onda de lançamentos da cena independente vem nos presenteando com uma quantidade admirável de filmes corajosos que, de tempos em tempos, aprimoram as discussões sobre os variados modos de se fazer cinema. Alguns desses trabalhos acabam conquistando seu espaço dentro da singular lógica de distribuição e exibição, reagindo com firmeza ao esmagador domínio de mercado dos grandes estúdios através da realização de projetos inovadores (tanto nas técnicas utilizadas quanto nas temáticas abordadas). O crescente entusiasmo é reflexo da acelerada modernização e do incontido avanço do consumismo, que tornam o acesso à tecnologia cada vez mais facilitado. Este fenômeno é global e permite que a capacidade criativa de muitas pessoas seja disseminada instantaneamente.

Nesse panorama, determinadas peças cinematográficas procuram se diferenciar enquanto arte, ao passo que também tentam se encaixar nas lacunas reservadas para o entretenimento. Apesar de possuir uma carreira sólida e um currículo recheado por pares de títulos com valores reconhecidos pela crítica e pela indústria em geral, o diretor nova-iorquino Sean Baker revoluciona e subverte convenções ao rodar seu último filme de maneira muito curiosa. “Tangerina” foi inteiramente registrado pelas lentes da câmera de um iPhone 5s; deixando claro que nenhum maluco saiu ao léu para gravar munido somente de um aparelho celular. Mesmo com parcos recursos, foi necessário que a equipe de produção contasse com um aparato técnico mínimo, dispondo de adaptadores anamórficos, tripés e rebatedores de luz, por exemplo.

De qualquer forma, a proposta é muito interessante e os resultados desse esforço apresentam para o público uma incrível comédia dramática que acompanha as desventuras da garota de programa Sin-Dee Rella (Kitana Kiki Rodriguez), uma transexual que vagueia enraivecida pelas ruas de Los Angeles durante a véspera de Natal. Após retornar de uma curta temporada de 28 dias na a prisão, ela descobre, por meio de uma conversa sincera com sua melhor amiga, Alexandra (Mya Taylor), que o seu namorado e agenciador, Chester (James Ransone), está lhe traindo. Às lágrimas e com o coração partido, Sin-Dee parte para uma enciumada e frenética perseguição sentimental, afim de acertar as contas com Chester e com sua suposta amante, a cisgênero Dinah (Mickey O’Hagan).

Apesar dos momentos hilariantes, o clima melancólico insiste em pairar sobre a atmosfera hipnótica e alaranjada de “Tangerina”, afinal, a infidelidade e as desilusões amorosas são os assuntos mais recorrentes dessa audaciosa narrativa. Algumas nuances de realismo são ressaltadas pelo desenvolvimento de histórias secundárias – como no núcleo do pervertido taxista Razmik (Karren Karagulian) – que revelam bastidores provocantes encobertos pela dinâmica suburbana da “cidade dos anjos”. Apoiado pelas contagiantes atuações do elenco, o longa ainda contempla a ampla diversidade cultural californiana e debruça-se sobre as questões de gênero constantemente aprofundadas pelo segmento LGBT.

"Tangerine" (2015) - de Sean Baker - Duplass Brothers Productions [us] | Through Films [us]

6º. LUGAR: “CINCO GRAÇAS”

(Mustang, França | Alemanha | Turquia | Catar, 2015) - de Deniz Gamze Ergüven

Data da Estreia: 21 de janeiro de 2016

Surpreendente longa-metragem de estreia da cineasta turca Deniz Gamze Ergüven, “Cinco Graças” é conduzido por uma das narrativas mais poderosas e destemidas já apresentadas pelo impactante cinema de criação desde a virada do século. Trazendo para o centro das discussões um assunto abordado frequentemente por produções do extremo ocidente asiático, o filme apresenta uma coleção de imagens emocionantes, carregadas de uma poética e de um realismo tão profundos que chegam a transbordar na tela todas as amarguras e tristezas que só a crueldade do patriarcado ainda pode provocar.

As aulas chegaram ao fim em İnebolu, pequena cidade litorânea ao norte da Turquia. Lale e suas quatro irmãs saem com alguns colegas para comemorar o início das férias de verão e se divertem na praia de maneira descontraída e completamente inocente, menos aos olhos da comunidade ultraconservadora. As garotas são órfãs e estão sob os cuidados da avó e de um tio que, logo após uma série de boatos, decidem mantê-las confinadas dentro de casa, impondo uma condição de submissão e o pleno cumprimento dos costumes mais rígidos de sua religião. Enquanto isso, os seus casamentos vão sendo arranjados, um a um, ainda que precocemente.

A vida das meninas toma um rumo diferente, mas, mesmo trancafiadas, elas nunca deixam de desejar a liberdade, resistindo com firmeza aos limites estabelecidos. Toda a história é acompanhada do ponto de vista de Lale, mas a coesão do enredo faz com que as atrizes que interpretam as cinco irmãs sejam a alma de “Cinco Graças”, uma celebração da amizade e da cumplicidade entre pessoas que se amam profundamente.

Apesar da trama se desenvolver em outro país, o longa foi o representante francês na disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano. Isso ocorreu porque, em 2011, Deniz Gamze Ergüven foi uma das convidadas a participar do Atelier da Cinéfoundation, um evento patrocinado pelos organizadores do Festival de Cannes que convidam alguns dos realizadores mais promissores do mundo para participar de uma espécie de meeting, abrindo as portas para que co-produções internacionais consigam apoio necessário para acelerar os processos de finalização e acabamento. A diretora estava procurando suporte para desenvolver o seu primeiro projeto, intitulado “Kings”.

Foi durante esse encontro que ela conheceu a diretora francesa Alice Winocour, que estava divulgando “Augustine” (2012) na semana de realizadores em Cannes. Sem o financiamento mínimo para a aprovação de seu projeto, Deniz foi aconselhada pela colega a escrever alguma peça cinematográfica mais intimista, que pudesse ser rodada com menos recursos e com mais liberdade, o que acabou levando as duas a trabalharem juntas na estruturação do roteiro de “Cinco Graças”.  O filme acabou sendo multipremiado, com destaque em Cannes no César e obtendo o reconhecimento da Academia.

Observação importante: “Kings” está em processo de filmagem... Vem coisa boa por aí!

"Mustang" (2015) de Deniz Gamze Ergüven - CG Cinéma [fr]

5º. LUGAR: “CAROL”

(Carol, Reino Unido | Estados Unidos | Austrália, 2015) - de Todd Haynes

Data da Estreia: 14 de janeiro de 2016

Quando o romance “O Preço do Sal” foi lançado em 1952, um artigo do popular The New York Times o classicava como “um relacionamento moderno entre duas mulheres”, justamente por não conseguir encontrar palavras melhores para discutir um tema que sequer era abordado pública e particularmente pela sociedade estadunidense na época. Autora do argumento, a escritora texana Patricia Highsmith chegou a utilizar um pseudônimo para conseguir publicar o livro e evitar a dura repreensão da crítica por ser mulher e por abordar a homossexualidade de uma maneira tão transparecida. Com o título de “Carol”, a obra teve seu texto adaptado para o rádio, para o teatro e, recentementnte, para os cinemas, em um notável trabalho conduzido pelo diretor Todd Haynes.

Ambientada na Nova York do início dos anos 50, a trama acompanha a trajetória de duas mulheres de origens bastante diferentes que casualmente se encontram e passam a a nutrir, uma pela outra, os sentimentos e desejos mais profundos. Sonhando com uma vida melhor, Therese Belivet (Rooney Mara) trabalha em uma loja de departamento em Manhattan durante o período do Natal. Certo dia, a jovem conhece Carol Aird (Cate Blanchett), uma mulher madura e sedutora que se encontra presa em um casamento fracassado. Já neste primeiro encontro, as duas acabam estabelcendo uma sintonia fabulosa, provocada pelo instintivo prazer de uma atração imediata.

Inevitavelmente, o envolvimento de Carol com Therese acaba vindo à tona; e como as normas convencionais daquele tempo contestavam qualquer tipo de relação extraconjugal de forma condenatória, as duas passaram a sofrer uma rejeição dobrada por conta dos recentes acontecimentos. O marido de Carol, Harge Aird (Kyle Chandler), passa a afrontá-la com discursos vazios sobre amor e cumplicidade e ainda contesta a sua capacidade e competência ao desempenhar o papel de mãe quando descobre os estreitos laços de amizade que a esposa também havia mantido com Abby Gerhard (Sarah Paulson), sua melhor amiga. Repleto de outras camadas afetivas e sensoriais, o longa se desenvolve sobre um plano reflexivo, contido e extremamente doloroso, mas sem dissipar a atmosfera carregada por uma tensão sexual latente cercada de mistérios, encantos e decepções.

Triste é percerber que, décadas depois, o mundo continua se comportando de maneira semelhantemente grosseira e intolerante. Assim como na ponta do lápis de Patricia Highsmith, o discurso do filme não pretende apenas se conservar como um recado espontâneo para a nossa geração, mas sim se transformar em um instrumento capaz de reverberar e renovar alguns de nossos conceitos a partir de um ideal de felicidade estúpido defendido pelos nossos antepassados. “Carol” é, sem dúvida, uma das demonstrações mais puras de que o amor é um fenômeno que sempre fará parte da condição de existência humana, independentemente da sexualidade.

"Carol" (2015) de Todd Haynes - Infilm [gb] | Number 9 Films [gb] | Killer Films [us]

4º. LUGAR: “O LOBO DO DESERTO”

(Theeb, Emirados Árabes Unidos | Catar | Jordânia | Reino Unido, 2014) - de Naji Abu Nowar

Data da Estreia: 18 de fevereiro de 2016

Candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro na edição deste ano, “O Lobo do Deserto” é uma obra cinematográfica poderosa, pois propõe uma das discussões mais urgentes sobre os atuais rumos da humanidade e é reflexo do florescimento de uma nova era de produções independentes que contemplam as regiões mais desfavorecidas do planeta. Diretamente confrontados pelo nosso indiluível caráter, observamos como determinadas decisões podem mudar a vida das pessoas de maneira drástica e efêmera. Além disso, descobrimos que a fraternidade, a solidariedade e o respeito à dignidade de cada ser humano representam um conjunto de virtudes que todos nós deveríamos comungar.

Em 1916, o mundo começava a sofrer algumas das consequências mais danosas de sua Primeira Grande Guerra. Em meio a eclosão dos primeiros conflitos armados da Revolta Árabe, Theeb (Jacir Eid Al-Hwietat) participa de uma arriscada peregrinação junto a uma tribo de beduínos que atravessa o deserto da Província de Hejaz, localizada no Império Otomano. Acostumado a um cotidiano rústico, o menino passa boa parte do tempo brincando com seu irmão mais velho, Hussein (Hussein Salameh Al-Sweilhiyeen). Entretanto, o destino desse grupo de viajantes toma outros rumos com a chegada de Edward (Jack Fox), um oficial do exército britânico, e Marji (Marji Audeh), o seu guia.

Perdido pelo território, o estrangeiro pede para que Hussein o acompanhe em uma missão secreta. Pela primeira vez a civilização ocidental penetra em um antro até então intocado e, de forma acidental, Theeb acaba se transformando no protagonista dessa história, tendo ainda que enfrentar a crueldade e a insegurança na sua precoce transição para a vida aulta. A sua trajetória é cativante e nunca apela para o sensacionalismo, justamente pelo fato de seu drama particular ser intenso e verdadeiro. Jamais esperamos que garoto trilhe uma jornada escaldante e solitária em busca constante pela sobrevivência; nostálgico, o sol se põe e mais um dia turbulento termina.

As ambientações são um espetáculo visual à parte e o ritmo lento e silencioso da narrativa são um convite para apreciar as belezas do deserto; assim como os enquadramentos focados nas expressões sofridas dos personagens, que nos aproximam ainda mais da profunda sutileza de suas interações. Simples tal qual o popular cinema iraniano – que alcançou reconhecimento internacional a partir da década de 90 – alguns longas lançados pela Jordânia vêm ganhando a atenção do público por marcarem presennça em alguns dos festivais mais importantes do mundo – principalmente nos últimos cinco anos – com amplo destaque para “O Casamento de May” (2013) de Cherien Dabis; e “Curse of Mesopotamia” (2015) de Lauand Omar. Futuramente, “O Lobo do Deserto” poderá se configurar como um dos principais trabalhos que colocaram o padrão das produções do Oriente Médio em um patamar ainda mais elevado.

"Theeb" (2014) - de Naji Abu Nowar - Bayt Al Shawareb [jo] | Noor Pictures [gb]

3º. LUGAR: “CREED: NASCIDO PARA LUTAR”

(Creed, Estados Unidos, 2015) - de Ryan Coogler

Data da Estreia: 14 de janeiro de 2016

Carregado de nostalgia, “Creed: Nascido para Lutar” alumia e revigora uma das franquias de maior sucesso da história do cinema através de uma crônica moderna que acompanha a jornada de superação de Adonis Johnson (Michael B. Jordan). O rapaz é fruto de um relacionamento extraconjugal do brilhante pugilista Apollo Creed, que morreu antes mesmo de conhecer o filho. Com a paixão pelo boxe impressa em seu DNA, ele tenta construir uma carreira vitoriosa nos ringues ao mesmo tempo em que procura fugir da sombra do pai.

Em busca de identidade, o jovem lutador segue para a Filadélfia afim de encontrar o grande amigo e maior rival de seu pai, o lendário Rocky Balboa (Sylvester Stallone). Envelhecido e avesso a modernidades, o ex-campeão mundial dos pesos-pesados se mostra reticente diante da proposta inicial de Adonis, que tenta convencê-lo a trabalhar como seu mentor. A partir do momento em que Rocky aceita treinar o garoto, passamos a testemunhar o fortalecimento de um fraterno vínculo de amizade entre os dois. Parte dessa cumplicidade é dividida com Bianca (Tessa Thompson), uma talentosa cantora de R&B que engata um relacionamento com Adonis.

Corajoso, o diretor Ryan Coogler – que já havia estreado de forma proeminente em longa-metragens com o elogiado “Fruitvale Station: A Última Parada” (2013) – resolveu transformar em roteiro uma antinga história que havia escrito, imaginando quais seriam os próximos passos de Rocky Balboa nos anos que seguiriam à sua aposentadoria. A ideia de colocar um personagem tão representativo no plano secundário dessa nova narrativa parecia ser uma aposta bastante arriscada. Consequentemente, convencer Sylvester Stallone a participar do projeto também não seria uma das tarefas mais fáceis.

O astro não só topou como também se envolveu de maneira apaixonada com a produção do filme. Definitivamente, esta seria a grande oportunidade de Stallone mostrar aos críticos a sua inquestionável versatilidade, se entregando a uma interpretação profundamente densa. Inclusive, grande parte da carga emocional da trama está centrada nas aflições e nas incertezas que tomam conta da vida particular de Balboa. A repetição do icônico papel rendeu a Sly o Globo de Ouro de Melhor Ator Coadjuvante; mas o fato de não ter o seu talento reconhecido pela Academia representou, certamente, uma das maiores frustrações deste ano.

“Creed: Nascido para Lutar” não pode ser classificado ou sequer considerado uma peça de comparação, mas não restam dúvidas de que ele devolveu a emoção e a qualidade que a série foi perdendo ao longo de suas continuações e que, fortuitamente, havia ganhado um pequeno fôlego com “Rocky Balboa” (2006), dirigida pelo próprio Stallone. A obra é bem superior a esse fato, pois construiu uma carreira independente e tem potencial para se transformar em um dos maiores clássicos da contemporaneidade.

"Creed" (2015) de Ryan Coogler
Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) [us] | Warner Bros. [us] | New Line Cinema [us] | Chartoff-Winkler Productions [us]

2º. LUGAR: “A CHEGADA”

(Arrival, Estados Unidos, 2016) - de Denis Villeneuve

Data da Estreia: 24 de novembro de 2016

Produção cinematográfica mais elogiada e recomendada deste final de ano, “A Chegada” trata com muita delicadeza e sensibilidade o que os demais filmes que seguem a linha habitual do gênero procuram abordar de maneira megalomaníaca. Adaptado do sofisticado conto de ficção científica “Story of Your Life”, do escritor Ted Chiang, o contorno da trama é concebido com notável vigor e explora uma série de temas interessantes, como o aguardado contato com outras formas de vida inteligente; como as incertas consequências estabelecidas em vínculos de casualidade podem afetar o nosso destino; e como o relativismo linguístico influi na construção cultural de universos intelectuais distintos.

Quando doze OVNIs gigantescos aparecem misteriosamente em vários cantos da Terra, uma equipe composta pelos cientistas mais respeitados dos Estados Unidos é imediatamente convocada pelo governo e pelos militares com o objetivo de investigar e desvendar as possíveis motivações deste primeiro encontro de espécies extraterrestres com a humanidade. Enquanto o mundo enfrenta uma de suas mais graves crises, oscilando entre vários desacordos diplomáticos e se encaminhando para um conflito global sem precedentes, o grupo liderado de forma protocolar pelo Coronel Weber (Forest Whitaker) se estabelece próximo a área onde uma dessas estranhas “naves espaciais” se encontra estacionada.

Entre os estudiosos recrutados estão Louise Banks (Amy Adams), uma professora universitária especializada em linguagem; e Ian Donnelly (Jeremy Renner), um físico aprumado e muito seguro de si por estar acostumado às explicações lógicas fornecidas pelos números. Correndo contra o tempo, eles tentam cumprir a difícil tarefa de interpretar e decodificar os incomuns sinais transmitidos pelos alienígenas que comandam esta ação. Apelidadas cientificamente de Heptapods (e carinhosamente de Abbott e Costello), as duas criaturas possuem uma forma bastante peculiar de se comunicar, elaborando uma estrutura de escrita baseada em símbolos semânticos complexos. Ao passo em que consegue decifrar alguns desses códigos, demosntrando uma linha de raciocínio possível para estabelecer uma interção com estes seres, Louise é envolvida por um dilema que poderá ameaçar a sua vida e, possivelmente, colocar todo o planeta em risco.

Certeira na crítica à instabilidade comportamental da sociedade e sua pífia capacidade de aproximação através do diálogo, a história ainda é entrecortada pelo relacionamento afetivo de Louise com a filha. Com recordações dolorosas ou com memórias que precisam ser esquecidas, observamos os pontos que sustentam um ardiloso suspense e provocam ondas de ansiedade no espectador. Essa característica narrativa é muito comum nas obras do diretor canadense Denis Villeneuve que, sempre acostumado com a construção de elipses, conduz aqui um trabalho sólido apoiado por um roteiro hábil e sem espaço para devaneios. Entretanto, é a interpretação exuberante de Amy Adams que carrega toda a emoção entranhada no longa, imprimindo ritmo e potência necessária para alavancar seu sucesso.

"Arrival" (2016) de Denis Villeneuve
21 Laps Entertainment [us] | FilmNation Entertainment [us] | Lava Bear Films [us] | Xenolinguistics [us]

1º. LUGAR: “O QUARTO DE JACK”

(Room, Irlanda | Canadá | Reino Unido | Estados Unidos, 2015) - de Lenny Abrahamson

Data da Estreia: 18 de fevereiro de 2016

O ano de 2016 começou repleto de promessas, alvoroçado pelas estreias de dramas estritamente densos, megaproduções milionárias e expansões das mais famosas franquias cinematográficas; mas nenhuma delas nos pegou com tanta surpresa e provocou tamanha comoção quanto o lançamento de “O Quarto de Jack”. O venturoso trabalho de Lenny Abrahamson carrega na simplicidade o seu maior trunfo, adaptando com maestria o romance “Room”, da escritora irlandesa Emma Donoghue. Apesar de contar com uma sinopse entreguista, é importante destacar que a trama nunca gira em torno das surpresas e sequer é marcada por grandes reviravoltas; em nenhum momento revelamos nada além daquilo que fora veiculado nos trailers ou em outros materiais de divulgação do longa.

Inspirado em casos doentios de sequestros, cárceres privados e escravização sexual, “O Quarto de Jack” não abusa da emoção ou do incômodo para tratar de um assunto tão repulsivo, severo e silenciosamente monstruoso. Sem dúvidas, a maior virtude alcançada na construção da narrativa fica marcada pela singeleza das ações, amplamente reforçada pela trajetória metamórfica de suas personagens. Essa predicação se torna ainda mais clara quando observamos um tema absolutamente complicado abandonar as possibilidades de se prender a sentimentalismos baratos, passando a tomar contornos interessantes ao ser conduzido através do prodigioso ponto de vista de uma criatura inocente, Jack (Jacob Tremblay), um garotinho de cinco anos de idade.

Entregue à imaginação, Jack tem vivido muito feliz dentro dos limites idealistas do seu universo particular, confinado em um pequeno galpão na companhia da mãe, Joy (Brie Larson). Ambos são mantidos reféns por um homem misterioso, conhecido apenas como Velho Nick (Sean Bridgers). O menino nasceu neste quarto e, fora as visitas periódicas desse sequestrador, seu único contato com o ambiente exterior se dá pela claraboia do abrigo e pelas imagens da televisão, que registram um mundo fantástico habitado por árvores, animais e outras pessoas. Tomada pelo amor e pela angústia, Joy elabora um plano arriscado para escapar do cativeiro; façanha que sublima a sua redenção e legitima as proezas do papel de uma mãe protetora.

A partir desse ponto, acompanhamos as descobertas e o misto de sensações que Jack experimenta ao mergulhar, de maneira profundamente inesquecível, em uma realidade da qual ele nunca sonhou que pudesse existir. Factualmente, considerações e discussões sobre o filme perder o fôlego quando a porta do quarto se abre são pertinentes, mas não podemos menosprezar a valorosa e singular direção de Abrahamson, que nos mostra o quanto essa vida real pode ser dilacerante. A atuação intrépida e magnética de Brie Larson foi agraciada com um Oscar na categoria de melhor atriz; e a simpatia de Jacob Tremblay transcende barreiras de fofura, fazendo do ator mirim a personalidade mais apaixonante e carismática do ano.

"Room" (2015) de Lenny Abrahamson - Element Pictures [ie] | Film 4 [gb] | FilmNation Entertainment [us]
Irish Film Board [ie] | No Trace Camping [us] | Ontario Media Devlopment Corporation (OMDC) [ca] | Telefilm Canada [ca]

Entendemos também que uma lista com apenas dez filmes acaba ficando muito pequeno para traduzir a ampla produção cinematográfica internacional. Dessa forma, resolvemos incluir, no final do artigo, pequenas listas que citam somente o título, o ano de produção e o diretor de filmes que se encaixam em algumas categorias que julgamos importantes. Confira:

Também mereceram destaque este ano: “O Cavalo de Turim” (2011) de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky; “Ele Está de Volta” (2015) de David Wnendt; “Elle” (2016) de Paul Verhoeven; “A Ovelha Negra” (2015) de Grímur Hákonarson; “O Regresso” (2015) de Alejandro G. Iñárritu; e “Spotlight: Segredos Revelados” (2015) de Tom McCarthy.

Não vimos e nem veremos: “Ben-Hur” (2016) de Timur Bekmambetov.

Ainda faltam ser conferidos: “Anomalisa” (2015) de Duke Johnson e Charlie Kaufman; “Capitão Fantástico” (2016) de Matt Ross; “Jovens, Loucos e mais Rebeldes” (2016) de Richard Linklater; “Juventude” (2015) de Paolo Sorrentino; “Sieranevada” (2016) de Cristi Puiu; e “Sully: O Herói do Rio Hudson” (2016) de Clint Eastwood.

Podem obter grande destaque em 2017: “Blade Runner 2049” (2017) de Denis Villeneuve; “La La Land: Cantando Estações" (2016) de Damien Chazelle; “Manchester à Beira-Mar” (2016) de Kenneth Lonergan; “Moonlight” (2016) de Barry Jenkins; “Silêncio” (2016) de Martin Scorsese; e “Toni Erdmann” (2016) de Maren Ade.

Maior expectativa para 2017: “Star Wars Episódio VIII” (2017) de Rian Johnson.

(*) Lembrando que críticas, apontamentos de injustiças ou esquecimentos podem ser expressos nos comentários... ;-)

(**) Também não descartaremos os elogios! :-D

Confira também as listas com “Os Dez Melhores Filmes” de cada ano elaboradas pelo Rotina Cinemeira em artigos anteriores:


ENTÃO É ISSO! QUE O ANO DE 2017 SEJA TÃO ESPECIAL QUANTO FOI O DE 2016: UM ANO DE EXCELENTES FILMES, INESQUECÍVEIS PARA TODOS NÓS!

VIVA O CINEMA!


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