George A. Romero morreu ao lado da esposa e da filha
enquanto escutava a apoteótica e magnética trilha sonora de “Depois do Vendaval” (1952) de John Ford,
um de seus filmes favoritos. Com um contorno etéreo e lisonjeiro, a notícia veiculada
ontem pela mídia internacional pegou muitos de seus fãs de surpresa. O diretor,
produtor e roteirista nova iorquino faleceu aos 77 anos depois de enfrentar uma
difícil batalha contra o câncer de pulmão.
Carismática, a figura de Romero era uma das mais icônicas
do cinema contemporâneo; e o cenário sublime de sua partida nos ajuda a
redescobrir a personalidade de um verdadeiro apaixonado pela sétima arte. Importante
realizador dos clássicos modernos do gênero de terror, Romero foi o maior
responsável por definir os parâmetros elementares dos filmes de zumbis e que ainda
vemos nos formatos mais atuais. Dos dezesseis longas-metragens que dirigiu, em pelo
menos metade deles essas criaturas vêm como matéria central; todas encaixadas
dentro de uma temática mítica que continuará influenciando gerações e gerações
de cineastas aficionados pela ameaça e pelo horror de cadáveres catatônicos
devoradores de cérebros.
Tendo como principal característica o baixo orçamento, os
filmes do início da carreira de George A. Romero eram compassados por um trabalho
quase operário, o que acabou imprimindo à sua assinatura uma marca poderosa em
obras que são cultuadas no mundo inteiro. “A
Noite dos Mortos-Vivos” (1968) – seu primeiro longa – teve um investimento
próximo a 100 mil dólares e arrecadou cerca de 30 milhões; um fenômeno
cinematográfico extraordinário que acabou se tornando o marco fundamental para a
recriação do gênero.
O cineasta George A. Romero (1940 - 2017) - Rex 1985 [us] | Laurel Entertainment Inc. [us] Dead Films Inc. [us] | Laurel-Day Inc. [us] |
A ideia original de corpos sem vida que perambulavam estranhamente
pelas ruas das cidades de forma inabitual e instintiva permitia que Romero começasse
a brincar de forma certeira com algumas das situações que afligiam a sociedade
estadunidense no fim dos anos 60 e por toda a década de 70. Em “O Exército do Extermínio” (1973), por
exemplo, a grande ameaça é um vírus que assola uma pequena cidade do interior
da Pensilvânia após o acidente com um avião que transportava uma poderosa arma
biológica e que acaba contaminando a reserva de água local. A doença é
implacável, causando a insanidade permanente ou a morte das pessoas
contaminadas. Tão obstinada e tenaz quanto a epidemia era a truculência das
forças militares, que instauraram estado de quarentena na cidade e agiram com
desmedida violência para exterminar essa praga.
Na época, maior que o medo do bioterrorismo ou da
extinção da espécie humana através de uma guerra química sem precedentes era – talvez
e somente – o chamado “sonho americano”, um conceito cada
vez mais enraizado na cultura ocidental extremamente refém e dependente do modo
capitalista de produção. Em “Zombie - O Despertar
dos Mortos” (1978) – considerado por muitos a sua obra-prima – Romero transparece
com enlevo e um tom sarcástico bem dosados a crítica mais contundente a esse
modelo social, personificando em um shopping lotado de criaturas bestiais e sem
personalidade que percorrem a esmo os corredores desse “templo” o maior símbolo
de uma nação doente. Tal qual a contaminação promovida pelos zumbis, o
consumismo (não só) aqui pode ser entendido como uma patogenia gravíssima.
De certa forma, o capital continua a comandar as ações no
globo e, desde que voltou a trabalhar com seus mortos-vivos, Romero se tornou
mais um dos reféns desta prosopopeia econômica. Seus três últimos filmes – “Terra dos Mortos” (2005); “Diário dos Mortos” (2007); e “A Ilha dos Mortos” (2009) – estão mais
alinhados aos formatos de produções hollywoodianos, o que o afastou de forma
definitiva das produções baratas e absurdamente lucrativas. Entretanto, o
legado de George A. Romero foi construído ao longo dessas últimas décadas e,
talvez, sem as suas obras seríamos seres ainda mais desprovidos de integridade
e de vontades próprias. Só temos a agradecer!
Esperamos a sua volta, Romero! Enquanto isso, tente
descansar... (1940 - 2017)
Dez filmes dirigidos por
George A. Romero que indico (em ordem de predileção):
01 - Zombie - O
Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead,
Estados Unidos, 1978)
02 - A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, Estados Unidos, 1968)
03 - Instinto Fatal (Monkey
Shines, Estados Unidos, 1988)
04 - A Metade Negra (The
Dark Half, Estados Unidos, 1993)
05 - Dois Olhos Satânicos (Due Occhi Diabolici, Itália | Estados Unidos, 1990)
06 - O Exército do Extermínio (The Crazies, Estados Unidos, 1973)
07 - A Estação da Bruxa (Hungry Wives, Estados Unidos, 1972)
08 - Martin (Martin,
Estados Unidos, 1978)
09 - Creepshow: Show de Horrores (Creepshow, Estados Unidos, 1982)
10 - Cavaleiros de Aço (Knightriders, Estados Unidos, 1981)
"Dawn of the Dead" (1978) de George A. Romero - Dawn Associates [us] | Laurel Group [us] |
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